terça-feira, 1 de setembro de 2015

Kafka, Deus e o Absurdo


Naftali Rakuzin
Com esta pergunta, que devo deixar em aberto, aventuro-me a uma aproximação da mensagem propriamente dita da obra de Kafka.
Essa mensagem, tal qual aparece pelo prisma das duas dificuldades mencionadas. Distorcida e duvidosa portanto, diz respeito à situação do homem em face das forças que o governam, à situação dessas forças em face do homem, e diz respeito ainda a essas forças em si. Se tentarmos reduzir essa mensagem a umas poucas frases, coisa com a qual Kafka evidentemente nunca concordaria, chegaríamos aproximadamente ao resultado seguinte: o homem vive em estado de culpa permanente em face das forças superiores. Sabe da sua culpa e da justiça de qualquer castigo que essas forças proventura lhe imporão, mas não sabe da natureza dessa culpa. Procura o contato com essas forças, não para pedir perdão, mas para esclarecer a sua culpa, para "saber". Ewssa procura tem excelentes possibilidades de êxito, já que as forças superiores são, aparentemente, muito próximas.
Entretanto, por motivos fúteis e absurdos, o êxito da procura é frustrado continuamente. Intimamente o homem sabe sempre da futilidade dos seus esforços para encontrar as forças superiores, e o sabe a despeito de todas evidência em contrário. Persiste, entretanto, na procura, porque prefere dar ouvidos à evidência, e não à sua convicção íntima. As forças, tão próximas e tão inalcançáveis, mantêm em face do homem uma atitude de indiferença e desprezo. Consideram o homem culpado (nisto estão de acordo com ele), mas não lhes vale a pena castigá-lo.
Ele próprio provoca o castigo com sua insistência de conhecer a sua culpa. A suspensão provisória do castigo divino (e por que não usar essa palavra?) não é consequência da Sua misericórdia, mas de Sua superorganização. A força divina funciona devagar e mal, porque é complicada demais e administrada numa rotina que lhe é totalmente inapropriada. Dada a completa indiferença da força divina em face do homem, este mau funcionamento não tem a mínima importância. Entretanto, neste mau funcionamento reside a única esperança do homem para escapar ao castigo justo que o espera. Sabendo, muito embora, disto, o homem, absurdamente, se esforça em apressar o funcionamento do aparelho divino. Nesse esforço frustrado reside a finalidade da vida humana. Assim devemos compreender o ensinamento do mestre Kafka: "Passei a minha vida a combater o desejo de acabar com ela".
A teologia que esta mensagem descortina diante da nossa visão estarrecida tem vários pontos de contato com as teologias das nossas religiões tradicionais, mas se distingue delas quanto ao seu clima. O clima da vida humana é o da angústia não mitigada por qualquer esperança, e o clima das hostes divinas é o nojo. A angústia humana não é, propriamente, um conceito novo, embora raras vezes tenha sido tão veementemente pregada como em Kafka. O que me parece ser revolucionário e epocal (no sentido exato dessa palavra) é o conceito do nojo divino. Em face do nojo divino a nossa angústia assume, realmente, proporções gigantescas, incomparavelmente maiores do que as da angústia em face da ira ou do ciúme divino. É preciso sorver esse nojo até o fundo, se quisermos compenetrar-nos da teologia de Kafka.
Não é o nojo que Deus sente da sua criação, este já era conhecido dos antigos profetas ("somos vermes diante de Ti"). É o nojo que Deus sente por Si mesmo. A tal ponto parece se blasfêmea essa teologia, que começamos a compreender e simpatizar com os esforços de Kafka de mascará-la em códigos.
Os pontos de contato com as teologias tradicionais são muitos e evidentes. É por esta razão que podemos considerar Kafka um profeta judeu, embora heterodoxo. Temos aqui, para citar somente um exemplo, o conceito do pecado original. Todos são culpados. Entretanto (e isto é característico), o pecado original é o estado primitivo, "natural" do homem, não é consequência de qualquer ato humano. Com efeito, ainda não comemos do fruto da árvore da sabedoria, e são justamente os nossos esforços de cometer esse crime que são continuamente e absurdamente frustrados.
A bem dizer (e nisto reside, creio, a suprema ironia), vivemos ainda no Paraíso, num Paraíso kafkiano, bem entendido. Numa teologia assim não há, evidentemente, lugar para a salvação e o Salvador, já que a queda ainda não aconteceu. O próprio conceito "salvação" carece de significado dentro do concetxto da obra de Kafka.
Uma enumeração dos pontos de contato entre a mensagem da obra de Kafka e a teologia tradicional, por fascinante que possa ser, seria, no entanto, um exercício fútil. A força de convicção que essa mensagem carrega consigo vence (com todas as reservas que continuamos nutrindo, e que ele próprio, certamente, continuava nutrindo) porque a visão que ele descortina concorda com a nossa vivência mais íntima. Trata-se de uma vivência tão penosa que a relegamos ao esquecimento, mas ela continua dormente em nosso espírito. Kafka veio para despertá-la. Consideremos o seu impacto:
Kafka ensina que a vida humana é uma procura frustrada do saber. Mas não se trata de uma procura orgulhosa, ou de um saber que proporciona poder. Nada tem a ver com a Hybris dos gregos. A vida humana nada tem de heróica. O homem não é rebelde. A procura à qual se dedica é um tatear dócil e humilde, e o saber que procura é o da sua própria perdição e futilidade. Esta ordem de ideias não concorda com a imagem do homem que geralmente estamos acostumados a projetar, mas concorda com a vivência íntima que temos de nós mesmos nos momentos de recolhimento.
Kafka ensina que as forças que nos governam são indiferentes e desinteressadas na nossa sorte. Mas não se trata da indiferença e do desinteresse das forças cegas da natureza, as quais substituem a divindade na mente dos ateus ingênuos do século passado. Trata-se de uma indiferença cheia de desprezo, e as forças que a nutrem para conosco a demonstram brincando conosco absurdamente e sem regra, para não dizer idioticamente. Esta ordem de ideias não concorda nem com o conceito teológico tradicional da providência divina, nem com o conceito cientista das leis da natureza, mas concorda com a nossa vivência íntima da estupidez e da absuridade das nossas desgraças. Kafka ensina que as forças superiores são máquina pedante, corrupta, mal conservada e nojenta. Esta ideia da Divindade é igualmente repulsiva e grotesca aos olhos de um crente como aos olhos de um ateu. Concorda, entretanto, com a vivência íntima que temos das forças que nos regem.
Senão, por que rezamos, a não se para corromper uma instância inferior da hierarquia Divina? Por que fazemos promessas a nós mesmos, senão para enganar um suboficial celeste, encarregado vagamente do nosso caso, mas que o acha aborrecido e tedioso demais para interessar-se realmente? Por que praticamos boas obras, senão para que obtenhamos um lançamento a crédito na nossa conta-corrente celeste, temendo, ao mesmo tempo, que algum contador incompetente faça um lançamento errado? Não é somente a nossa mente individual que opera intimamente com o conceito kafkiano da Divindade, mas as próprias religiões tradicionais o nutrem. Que outro significado podem ter, por exemplo, rezas do tipo "Ora pro nobis", a não ser "Não te esqueças de rezar por nós, já que és perfeitamente capaz de esquecer"?
Enfim, a força da convicção que a mensagem de Kafka tem, não provém  nem da razão, nem da fé, mas da vivência imediata.

Vilém Flusser. Da Religiosidade. A literatura e o senso de realidade. Escrituras, 2002

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Fé, ciência, tecnologia e filosofia

Agora (2009)

Quando abro o rádio, jorram anúncios; quando abro a torneira, jorra água. Se amanhã a torneira jorrasse anúncios, a minha reação seria surpresa. Vivo em expectativa constante: espero constantemente que torneiras jorrem água, pura água, toda a água, e nada mais que água. Essa minha expectativa não é confirmada pela experiência que meus sentidos fornecem. Torneiras jorram água suja, ou pouca água, ou nada. Mas a evidência dos meus sentidos não destrói a minha fé nas torneiras. "Explicam" o comportamento das torneiras por fatores externos, como a hipótese da falta de chuva, ou a hipótese do encanador, ou a hipótese da Municipalidade. Essas hipóteses "provam" que, eliminados os fatores externos, torneiras jorram água. A evidência dos meus sentidos, embora prima facie contrária à minha fé nas torneiras, fortalece, em virtude das hipóteses, a minha expectativa de água. Pois é este exatamente o caráter da fé: é uma esperança que transforma evidência contrária em prova. 
Mas o caso da torneira jorradora de anúncios seria diferente. Seria, não o inesperado, mas o inesperável. Causaria surpresa. Poderei superar essa surpresa com hipóteses ousadas. Pela hipótese da alucinação, ou pela hipótese do rádio portátil escondido na torneira, por exemplo. Mas, por um instante pelo menos, a minha fé ficará abalada. 
Casos como o da torneira jorradora de anúncios ocorrem. Antigamente eram chamados limagres. Hipóteses ousadas reintegravam os milagres no tecido da fé, a qual continuava fortalecida por eles. "Das Wunder ist des Glaubens shoenstes Kind" (o milagre é o filho mais belo da fé) diz Goethe. Tão forte era a fé, que os antigos esperavam pelo inesperável, pelo milagre. Atualmene, embora continuem ocorrendo casos surpreendentes, não ocorrem milagres. Evoluímos um mecanismo que sufoca automaticamente surpresas. É o mecanismo do "faça-de-conta". Quando algo inesperável ocorre, fazemos de conta que era esperado. É graças a este mecanismo que nada nos surpreende. Tudo é corriqueiro. Torneiras jorradoras de anúncios: nada mais corriqueiro, nada mais banal que isto. 
Que ocorram. O choque de surpresa que causarão não passará de vestígio de uma ingenuidade superada. A tese do presente artigo será que este nosso mecanismo é sintoma de fé profunda. Que somos uma época que espera por milagres. E que nossa fé na torneira é parte da nossa fé fundamental na tecnologia. De uma esperança portanto que é fortalecida por evidências contrárias, e que cresce com torneiras jorradoras de anúncios, com milagres portanto. 
Se digo: "Amanhã nascerá, em vez de sol, um queijo de Minas para iluminar a Terra", terei dito uma absuridade. Mas se digo: "Ontem nasceu um queijo de Minas e iluminou a Terra", e se milhares confirmarem esta minha observação, terei articulado uma banalidade. É óbvio que o queijo de Minas nasceu. As teorias astronômicas esperavam pelo nascer do Sol, mas essas teorias são apenas sistemas hipotéticos incompletos. Comportam uma reformulação progressiva. Se reformuladas à luz dos acontecimentos de ontem, provam essas teorias que o nascer do queijo de Minas era um acontencimento necessário, ou, pelo menos, altamente provável. O queijo de Minas, longe de abalar a astronomia, prova, pelo contrário, a eficiência do método científico como captação da "realidade". Todo fenômeno novo se enquadra nesse método por simples modificação da teoria. Esta é, a meu ver, a forma como funciona a fé  na atualidade. 
É a fé na coincidência do pensamento de um determinado tipo com o mundo que nos cerca. O primeiro artigo dessa fé reza: "O pensamento lógico coincide com a realidade". O segundo artigo reza: "A expressão mais perfeita do pensamento lógico são enunciados da matemática pura". O credo conclui: "A realidade tem a estrutura da matemática pura". Isto não é, como parece, racionalismo puro.A tecnologia prova, empiricamente, qu enossa fé é a fé verdadeira. Nossas máquinas e nossos instrumentos são fé aplicada, são "obras" no significado teológico do termo. E nossas máquinas e instrumentos funcionam. "Provam" nossa fé empiricamente. Funcionam como funciona, por exemplo, a torneira. Jorram água, e isto prova, também, que nossa fé é verdadeira. Ou jorram anúncios, e isto prova, de maneira concludente, que nossa fé é verdadeira. Nossa fé tem um aspecto racional, e um aspecto empírico: é uma fé completa. 
A coincidência entre pensamento lógico e "realidade" é incrível. Não pode ser acreditada. Nossa vivência do mundo a desmente a todo passo. No entanto, nossa fé aceita essa coincidência como fato indubitável. É uma fé autêntica, porque crê quia absurdum. Mas ao dizer que a coincidência é incrível, coloquei o presente argumento em terreno estranho à fé da atualidade. A "nossa" fé não é a fé do presente argumento. Como consegui essa ironia? Evidentemente porque nossa fé permite, em seu estágio atual, que seja abandonada. Abriu fendas. Por uma dessas fendas escapou-lhe o presente argumento. Uma fé que abre fendas é uma moradia incômoda e perigosa. É incômoda, porque ventos gélidos invadem os seus aposentos e fazem tremer os que nela se abrigam. E é perigosa, porque ameaça ruir e soterrar os habitantes em sua ruína. Duas são as possibilidades que uma situação destas oferece: método pelo qual o pensamento se agarra às coisas para modificá-las. 
O próprio êxito desses dois métodos (que é o triunfo do Ocidente) e também, a meu ver, o começo do fim da Idade Moderna, e, talvez, por isto mesmo, o começo do fim do Ocidente. Porque o conhecimento do mundo dos corpos que a ciência proporciona ao pensamento revela progressivamente a dubiedade desse mesmo mundo, e a modificação nele operada pela tecnologia é portanto fútil. 
Em outras palavras: as conquistas epistemológicas e éticas do pensamento ocidental em seu avanço contra o mundo dos corpos revelam progressivamente que falta, a esses métodos, o concursus Dei. Há algo fundamentalmente errado na visão cartesiana da qual brotaram. Se a física moderna revela progressivamente e de muitas maneiras que o fundamento da matéria é o pensamento, já que os elementos da metéria se revelam como sendo mais símboos do pensamento que outra coisa (nêutrons, mésons etc), e já que em certos processos fundamentais não é possível fazer-se a distinção entre observador e observado, isto é, entre sujeito e objeto, há algo errado na física como método do conhecimento.E se a tecnologia modificou o mundo dosc orpos a ponto de tornar perfeitamente imaginável um estágio de fartura e de lazer, sem que com isto diminua a angústia e o tédio humano, há algo errado na tecnologia como busca de felicidade. Esse erro fundamental devemos buscá-lo, ao meu ver, no conceito do pensamento tal como foi projetado pela visão cartesiana, e realizado pelo Ocidente no curso da Idade Moderna.
A dicotomia que Descartes estabelece entre matéria e pensamento, entre corpo e alma, entre o duvidoso e o indubitável, é, ao meu ver, uma dicotomia nefasta. Mas confesso ser ela de superação muito difícil. Porqu eessa dicotomia, longe de ter surgido no sistema cartesiano, já está contida nos mitos primordiais que deram origem à civilização ocidental e que encontrram a sua experssão ritualizada no cristianismo. 
Descartes não passa, deste ponto de vista, de uma explicação do cristianismo. Já o cristianismo distingue, para falarmos com Vicente Ferreira da Silva, entre o salvável (que é a alma) e o sacrificável (que é o corpo). A dicotomia pensamento-matéria não é portanto fruto de uma distinção epistemológica, como parece ser se formos considerar a partir de Descartes, mas é fruto de todo um conjunto ético-religioso do qual participamos. Já que fomos projetados por esse conjunto, já que existimos nele e graças a ele, é tremendamente difícil imaginarmos outro projeto existencial, no qual a nefasta divisão matéria-espírito não seria o caso. Embora saibamos de outras civilizações, como a indiana (que desconhece a divisão a ponto de conceber espíritos materializados), e de culturas chamadas "primitivas" (que vivem em mundos pré-lógicos, isto é, anteriores a essa divisão), é-nos impossível sorvermos existencialmente esses projetos alheios ao nosso. 
Mas é necessário pelo menos tentarmos esse salto para fora do nosso projeto, se é que tenho alguma razão ao afirmar que a divisão matéria-pensamento ameaça a nossa civilização com o mergulho no abismo do tédio e da futilidade, justamente pelo êxito da ciência e da tecnologia. E creio ser possível esse salto, até certo ponto. Não pelo ultrapassar do nosso projeto, mas graças ao poder reflexivo do qual dispomos e o qual nos poderá conduzir até perto das nossas origens, daquelas origens nas quais se deu, in illo tempore, a divisão entre pensamento e matéria, entre alma e corpo. A reflexão, portanto, para a qual convido os senhores, deve conduzir-nos até aquele ponto (para recorrer a um mito) no qual se deu a expulsão do paraíso, isto é, a alienação que é o nosso pensamento. 
Que poder é esse, que acabo de mencionar e que chamei de reflexivo? Para iluminá-lo, voltemos por um instante a considerar o processo do pensamento tal como o descrevi há pouco. Disse que o pensamento se precipita sobre os corpos para compreendê-los, e que se agarra a eles para modificá-los. O pensamento é portanto um processo explosivo que se expande para dentro do mundo dos corpos para devorá-los. O método desse devorar é a ciência e a tecnologia. Mas existe outro movimento do pensamento, um movimento oposto. Nesse movimento contrário o pensamento se vira contra si mesmo para compreender e devorar-se a si mesmo. A palavra "reflexão" indica a direção desse movimento, já que denota um recuo em direção oposto ao avanço. A palavra correspondente alemã "Nachdenken" (pensar atrás ou depois) indica a função desse movimento, já que denota controle. 
E a palavra correspondente tcheca "rozmyslení" (pensar analítico) indica o resultado desse movimento, já que denota a decomposição do pensamento. A reflexão é portanto o movimento inverso do pensamento, que o controla e o decompõe em seus elementos. O método esse compreender-se e modificar-se do pensamento é a filosofia. A filosofia é portanto exatamente o contrário da ciência e da tecnologia. As tentativas empreendidas de diversos lados, por exemplo pelos marxistas, por Dilthey e por Husserl, de tornar científica a filosofia, denotam, ao meu ver, uma incompreensão total do processo do pensamento. Se afirmei que, em nossa tentativa de evitar a queda da nossa civilização no abismo do tédio e da futilidade, devemos recorrer à reflexão, tinha eu em mente exatamente essa oposição entre filosofia de um lado, e ciência e tecnologia do outro. Não é com mais ciência e mais tecnologia que sairemos da situação angustiada na qual nos encontramos mas com mais filosofia (se é que sairemos). É verdade que na descrição que acabo de lhes oferecer a ciência e a tecnologia aparecem como tendências progressivas do pensamento, e a filosofia como a sua tendência regressiva. E é verdade que a grande maioria continua valorizando positivamente o progresso como herança dos dois séculos passados e a despeito de muitos sintomas inquietantes. Mas existem situações, reconhecidas mesmo por aqueles que põem sua fé no progresso, nas quais uma expansão excessiva exige um recuo para consolidação e descanso. Creio que devemos caracterizar assim a nossa situação, mesmo se formos otimistas. A minha proposta de substituirmos a ciência e a tecnologia pela filosofia pode ser portanto encarada como um réculer pour mieux sauter mesmo por aqueles que não crêem, como eu, estar o nosso progresso dirigido rumo ao abismo. 
Disse que a reflexão metódica, a filosofia portanto, deve conduzir-nos até perto das nossas origens, em profundidades portanto que caracterizei pelo mito da expulsão do paraíso. Esse mito nos conta, conforme creio, em sua linguagem densa e poética, que caracteriza todo mito, o mistério do surgir do pensamento. Conta-nos esse mito que fomos expulsos e lançados para cá porque comemos do fruto proibido da distinção entre o bem e o mal, do fruto da divisão e da dúvida portanto. Modernizando um pouco, poderei chamar esse fruto de "antimescalina". A expulsão do paraíso, o qual pode ser descrito como o estado da não-divisão e da não-dúvida, a expulsão para cá, que pode ser descrito como o estado da divisão e da dúvida, não é um acontecimento do passado histórico remoto, mas é um acontecimento mítico, isto é, um acontecimento que a todos nós aconteceu e sempre acontece de novo. Estamos sendo expulsos do paraíso toda vez que distinguimos, toda vez que duvidamos. Aliás, duvidar é sinônimo de distinguir e de estar expulso, já que etimologicamente parente de dividir e de dois. Em alemão isto se torna ainda mais claro, já que "zweifeln" (duvidar) conduz ao "verzweifeln" (perduvidar), isto é, ao desespero. A nossa expulsão desesperada do paraíso é portanto a própria dúvida, que é por sua vez um distinguir, um dividir, um ordenar portanto. 
Fomos expulsos do paraíso em direção da ordem e do progresso. Deixamos para trás, sem esperança, o caos da indistinção e da ingenuidade, e estamos sendo lançados, impiedosamente, em direção do cosmos da clareza distinta, que é, como diz o mito, a morte. Esta me parece ser a mensagem do mito, que foi reformulada, em sua versão mais moderna, por Heidegger na frase: "fomos lançados para cá e estamos aqui para a morte". Mas esse duvidar, que é um distinguir e ordenar, e que o mito chama de expulsão, esse duvidar é o próprio pensamento. Com efeito, duvidar e pensar são sinônimos, e Descartes é, todo ele, resultado desse sinonimato.A coisa pensante cartesiana é indubitável, justamente porque ela é a coisa que duvida. De acordo com Descartes a dúvida não pode duvidar de si mesma. A dúvida, portanto o pensamento, distingue e ordena o duvidoso, submete o duvidoso a uma ordem, a fim de que o duvidoso deixe de sê-lo e se torne indubitável. O pensamento é portanto um processo absurdo. Duvida para deixar de duvidar, e transforma, nessa tentativa, o duvidoso em dúvida. O processo é absurdo em dois aspectos: é absurdo porque a meta do pensamento é acabar consigo mesmo, e é absurdo porque o pensamento pretende alcançar essa meta pela transformação de tudo em dúvida. O pensamento em sua absurdidade é comparável à sede que pretende matar-se bebendo o mar: porque é absurdo querer beber o mar, e porque com cada gota bebida a sede aumenta. Quanto mais progride o pensamento, tanto mais evidente se torna a sua absuridade dupla, tanto mais evidente se torna ser o pensamento a expulsão do paraíso.

Vilém Flusser. Da religiosidade. A literatura e o senso de realidade. São Paulo, Editora Escrituras, 2002 

sábado, 23 de maio de 2015

Homo imago. Imagem como sobrevivência e segundo corpo do homem

Compartilho com vocês uma adaptação do meu projeto de pesquisa, em formato de artigo. Talvez algumas coisas originais à escrita do projeto ainda estejam no texto, mas acredito que a ideia e proposta geral estão aí inseridas.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Demência digital: doença ou evolução?

Foto de Stefan Klauke

Entre dispositivos móveis, internet rápida e fácil acesso à informação, o professor de inglês da Universidade de Waterloo Marcel O'Gorman pergunta: o que é demência digital? Em seu artigo Taking Care of Digital Dementia, o pesquisador explica que não existe realmente uma evidência empírica de que a internet e outras mídias estão prejudicando funções cognitivas como a memória e a atenção. Contudo, há vários argumentos que tentam sugerir que as pessoas já não pensam da mesma maneira que o faziam - e isso seria culpa da tecnologia. Conforme explica o pesquisador, há cada vez mais literatura sendo produzida em torno da "demência digital", apesar de o uso desse termo, em específico, ser questionável, uma vez que a demência, em si, é uma condição variável e que não se restringe apenas à perda de memória.

Citando o diálogo entre Sócrates e Thamus, presente no Phaedrus de Platão, O'Gorman aborda a rejeição dos personagens ao dom da escrita, uma vez que a "dependência da tecnologia do alfabeto irá alterar a mente de uma pessoa, e não para melhor". Para Sócrates, a escrita, ao promover a substituição de símbolos externos por memórias internas, ameaça o homem de se tornar um pensador raso à medida que previne a obtenção de um nível intelectual mais profundo, o qual levaria "à sabedoria e à verdadeira felicidade".

Jacques Derrida, contudo, aponta para a ironia da passagem: Sócrates fazia uma crítica aos sofistas e à substituição da memória a partir de um dispositivo que, em si, torna-se uma "prótese para o órgão", sendo isso considerado uma perversão. Isto é, Platão defende que os sofistas estavam usando a tecnologia da escrita como uma forma de mecanizar o discurso filosófico, quando este seria originalmente "decorado" ou espontâneo. Significa que o medo de Thamus em aderir à escrita é de que isso resulte em uma forma de demência, de um "esquecimento na alma dos aprendizes".

Nesse sentido, O'Gorman alerta: o medo de que a tecnologia cause alguma deficiência em nosso nível biológico vem de vinte cinco séculos atrás. Para embasar esse raciocínio, em 2007 um estudo foi realizado no Trinity College Dublin, descobrindo assim que 25% dos participantes abaixo dos 30 anos não conseguiam lembrar o número de telefone de suas casas sem consultar o celular. Apenas 40% dessas pessoas foram capazes de lembrar a data de aniversário de seus familiares, enquanto 87% dos participantes acima de 50 anos se recordaram. Para o pesquisador responsável, Ian Robertson, os resultados sugerem uma "Atrofia de Memória Induzida pela Tecnologia". 

De forma semelhante, um pesquisador da Coreia do Sul, Yoon Se-chang, aponta que "conforme as pessoas estão mais dependentes de dispositivos digitais para buscar informações do que por lembrá-las sozinhos, a função de pesquisa do cérebro melhora e a habilidade de lembrar diminui". Em um artigo no Korean Times, as observações de Se-chang se unem a outras feitas pelo instituto de pesquisa Embrain: "Diferentemente de antes, as pessoas hoje não precisam fazer muito esforço para lembrar as coisas, já que elas estão a um botão de distância das informações necessárias, as quais estão armazenadas em seus celulares, PDAs ou navegadores. Tudo que têm que fazer é procurar entre elas. O fácil acesso à internet também enfraquece a capacidade de memória. Toda vez que uma pessoa pergunta à outra sobre alguma coisa, você vai facilmente escutar: 'Procure na internet'".

Ainda na Coréia do Sul, o Dr. Byun Gi-Won, do Balance Brain Center em Seoul, afirma que a demência digital não afeta apenas a memória, mas também a atenção e o desenvolvimento emocional. Segundo ele, a disfunção é "caracterizada por déficits de memória, distúrbios de atenção e achatamento emocional entre os jovens que passam muito tempo jogando videogames, fazendo pesquisas online, enviando mensagens e arquivos multimídia pelos smartphones". Para O'Gorman, um modelo como esse, que engloba mais fatores além da memória, parece mais promissor, ainda que ele acredite que a teoria de Gi-Won, em específico, seja controversa por se basear no conceito de lateralização do cérebro - algo já superado em 1981 pelo neurobiólogo Roger Sperry e mais vários outros neurocientistas, como Manfried Spitzer.

Spitzer, aliás, é autor do livro Digitale Demenz (2012), no qual amaldiçoa a mídia digital. De acordo com sua pesquisa, os danos causados por tais suportes são irreversíveis. Assim como já foi proposto pelo escritor Nicholas Carr e a professora universitária Maryanne Wolf, Spitzer defende a plasticidade do cérebro conforme explica que crianças pequenas que usam dispositivos digitais estão mais propensas a sofrer precocemente com a demência do que aquelas que interagem com objetos táteis mais complexos. Em suas palavras, "os ambientes digitais privam a experiência que é necessária durante os primeiros anos, para a formação completa do cérebro".

Apesar das previsões apocalípticas de Spitzer, seu diagnóstico se diferencia dos anteriormente citados por se fundamentar principalmente na neurociência sonora. Mas, ainda assim, O'Gorman critica as conclusões do pesquisador, já que Spitzer afirma que os danos causados ao cérebro são permanentes ao mesmo tempo que considera a plasticidade do cérebro. O professor de inglês explica que "Spitzer parece associar a demência digital a mudanças fisiológicas permanentes, tais como aquelas causadas pelo Alzheimer, por exemplo. Mas se o cérebro é tão plástico quando ele e outros neurocientistas nos levaram a acreditar, então por que não imaginar que a demência digital seja um tipo de demência reversível, assim como a que é causada pela depressão, excesso de álcool e drogas, e deficiências nutricionais. O próprio Spitzer compara o uso da internet ao consumo de álcool, comparando uma competência tecnológica à 'formação de competência alcoólica no jardim de infância ao dar um pouco de schnapps todos os dias às crianças'".

Doença questionável

Mas e se o uso constante de dispositivos digitais for uma evolução em vez de disfunção? O'Gorman diz que, assim como o cérebro humano, as mídias digitais também são plásticas. Conforme mídia e cérebro se desenvolvem em conjunto, o professor acredita que, talvez, os efeitos observados atualmente por Spitzer não pareçam tão consistentes em uma década ou mais. Mesmo porque, como sugere o autor, será que estamos falando de um cérebro digitalmente demente ou um cérebro digitalmente aumentado? Seguindo a lógica dos transumanistas, as mídias digitais são certamente um benefício, uma extensão do homem.

O'Gorman propõe que, eventualmente, as pessoas que fazem crítica a esse hábito contemporâneo podem estar se utilizando de retóricas questionáveis ao descontar as possibilidades que as novas mídias têm de, na realidade, melhorar a atenção, memória e afeto, especialmente se nossos cérebros continuarem se adaptando a elas. Para O'Gorman, os discursos e a ciência usada na defesa por uma demência digital são questionáveis, chegando ao ponto de fazer com que o pesquisador sugira que, de certa forma, talvez essa doença seja proposta mais por conta de uma vontade de nos vermos livres dos dispositivos que constantemente fazemos uso, seja profissionalmente ou não. 

O professor insinua que, principalmente aqueles que não cresceram e evoluíram com as mídias digitais desde o nascimento, são os que têm o diagnóstico da demência digital como "uma grande desculpa para tirar férias da tirania do e-mail, das mensagens, Facebook e assim por diante. A existência de tal doença também dá à geração baby boom, que está realmente enfrentando uma perspectiva de demência por envelhecimento, a evidência de que os nativos digitais que os sucedem são menos inteligentes que os mais velhos. A demência digital, portanto, será vista por muitos como uma pseudociência cheia de inveja grosseira e medo".

No ambiente acadêmico, é notável a preocupação e crítica feita por professores diante de uma geração que está constantemente conectada à internet a partir de seus dispositivos móveis. Alguns usam como base disso estatísticas sobre o tempo de atenção que os alunos dedicam às aulas, como foi ressaltado pela educadora americana Tracey Tokuhama-Espinosa. Tendo participado do 11° Congresso do Ensino Privado Gaúcho, Tracey também concedeu uma entrevista ao jornal Zero Hora, na qual revelou que um aluno é capaz de reter informação durante apenas 10 ou 20 minutos. Ela explica que os estudos foram feitos a partir de questões educacionais, psicológicas e neurocientíficas, tendo como conclusão que o professor deve usar estratégias como a abordagem do aluno ou novas configurações na sala de aula, por exemplo. A educadora salienta que os dois fatores fundamentais para a aprendizagem são a atenção e memória: "Se não tem atenção, não se tem memória. Se não se tem memória, não se tem aprendizado. Se não mantivermos os alunos com um bom nível de atenção, não haverá aprendizagem. A consequência é grave".

Contudo, a desatenção existe desde antes da popularização dos dispositivos móveis e, por esse motivo, seria difícil culpá-los integralmente. Mesmo assim, não deixa de ser possível afirmar que as novas tecnologias provocam ainda mais falta de foco, especialmente por seu formato interativo e múltiplo, dividido em hyperlinks, abas e janelas. Nesse sentido, seria provavelmente mais interessante atualizar o método e o formato de ensino que continuar administrando um formato medieval durante o século XXI. 

O ambiente escolar

Em O Pensamento Sentado, Norval Baitello Jr. comenta justamente sobre o ato de se sentar, de manter-se em repouso sobre uma cadeira ou, mais precisamente, sobre os glúteos. Como lembra o autor, Nietzsche usava o termo Sitzfleisch (nádegas) também no sentido de "persistência, tenacidade, resistência de ficar sentado (quase sempre diante de uma máquina ou de uma tarefa difícil)". Essa resistência, aliás, é algo requerido e adquirido por conta de muitas profissões e atividades humanas. Isso "mostra como somos forçados a permanecer sentados mais do que aguentamos", num estado frequente de impaciência e de literal oposição à natureza que nos torna propensos a não ficar nessa posição por muito tempo.

Baitello argumenta que, enquanto sentados, na verdade estaríamos desejando "dar vazão e liberdade ao inquieto primata saltador ou ao incansável nômade. Resistir significa deixar de ouvir o corpo e sua necessidade de movimento, significa abstrair e subtrair a história natural da espécie em favor de um programa puramente mental". Dessa forma, a união cadeira-homem combina sedentarismo corporal e ativismo visual, um "esforço ocular extremado, ou seja, sentar até não mais poder e olhar até nada mais ver". Isso nos leva ao tema de uma palestra ministrada por Vilém Flusser, em 1990. Em "Reflexões nômades", o pensador tcheco-brasileiro discorre como o homem sobreviveu a três grandes catástrofes: a hominização (descida da copa das árvores, a necessidade do caminhar bípede e ereto), a civilização (vida em aldeia, domesticação e cultivo de animais e plantas) e a "catástrofe sem nome".

As duas primeiras catástrofes, nomeadas, também acompanham verbos compreensíveis às suas noções: o caminhar nômade e bípede está relacionado à atividade de "fahren" (deslocar-se, em alemão), a qual desenvolve o "erfahren" (tomar conhecimento, reunir experiências); já o sedentarismo e o assentamento dizem respeito aos verbos "sitzen" (sentar, estar sentado) e "besitzen" (possuir, acumular bens). No entanto, essa última fase teve um período curto, de pouco mais de 10 mil anos que já se findam, dando lugar à "catástrofe sem nome", uma vez que nossas casas estão sendo invadidas pelo "furacão da mídia", expressão usada pelo comunicólogo alemão Harry Pross. 

A mídia vem como o vento que penetra pelas paredes em forma de imagens, palavras, sons, cenas, narrativas e informações, sites, blogs, redes sociais, serviços de mensagem. Saltamos como primatas, de janela em janela, e nos deslocamos, como nômades, por diferentes endereços eletrônicos direcionados, propositalmente, em um navegador. Para Baitello, essas interfaces "nos convidam a espiar o tempo todo, (...) nos hipnotizam o olhar e nos paralisam o corpo", de modo que, mesmo entre amigos ou família, pelo menos uma pessoa fatalmente será seduzida por uma televisão ligada. "Mesmo que a conversa seja animada, que o assunto e o encontro sejam palpitantes, os olhares furtivos para a tela são inevitáveis e indisfarçáveis", alerta o pesquisador.

Esse impulso estaria, portanto, totalmente conectado ao nosso impulso nômade que retorna apenas como força que move os olhos e ouvidos: é um nomadismo voyeurista, "aquele que só sente prazer em ver, ao longe, o objeto do desejo". Assim, novas concepções de fixidez e referências nascem junto de diferentes percepções e vivências do espaço e do corpo. E, ao mesmo tempo em que se deseja fugir sem sair do lugar, cria-se uma dependência por telas, por displays de imagens. Baitello indica que adolescentes e jovens adultos são os mais afetados por essa "patologia" (sic), sendo que, páginas a frente, ele também argumenta que "nossas escolas se tornaram ao longo dos séculos instituições mestras em domesticar a inquietude natural de nossas crianças".

O pesquisador comenta que anos são gastos para que uma criança aprenda a se sentar e permanecer sentada, "preferencialmente com as mãos também em repouso". Isso passa a ser, mais do que o conteúdo, o principal elemento do processo educacional que, atualmente, "funda-se sobre uma escolarização para a redução e para a simplificação do indivíduo. Em primeiro lugar, devemos aprender a ficar sentados, quase imóveis, já quando crianças bem pequenas, nos jardins de infância e na pré-escola". O movimento, assim, explora os limites impostos e o espaço ao redor, reduzido. Baitello comenta que chegou a ouvir o depoimento de uma jornalista que, quando criança, sentava-se em carteiras escolares com barras situadas sobre o tampo, de modo a imobilizar os braços e as mãos dos alunos inquietos. Como consequência dessa lógica, o autor de O Pensamento Sentado indica que tal sedação e assentamento fazem jus ao termo Sitzfleisch segundo Nietzsche: "constitui o maior pecado contra a natureza do próprio homem".

Talvez seja por esse motivo que escolas vêm analisando o uso de dispositivos móveis na sala de aula, como ocorreu a partir da distribuição de laptops no Uruguai ou no uso de jogos educativos em uma escola particular de São Paulo, estudada por Tiago Mota e Silva em seu artigo Mídia como brinquedo: considerações sobre a apropriação lúdica da tecnologia por estudantes do primeiro ano do ensino fundamental. O jornalista descreve a experiência de uma instituição de ensino brasileira que disponibiliza tablets para alunos do ensino médio e fundamental, de maneira que o aparelho se torna um brinquedo educativo - isto é, a valorização do fator lúdico presente no homem e, assim, também na sala de aula.

Desse modo, o literal uso dos dispositivos móveis, em sala de aula, seja uma possível e literal solução à "falta de foco" diagnosticada pelos educadores. Entretanto, ainda poderíamos questionar se o próprio método da aula expositiva, reorganizado a partir da lógica de saltos hipertextuais, com o uso de dispositivos multimídia, também poderiam ser uma saída aproveitável - isto é, da narrativa linear típica da escrita à adaptação pós-histórica (Flusser) do discurso.

Homem tecno-lógico

Por fim, conforme explica O'Gorman, a proposta da demência digital pode funcionar como uma "contra-narrativa" diante da defesa do aprimoramento do ser humano a partir da tecnologia, como ressaltado pelo transumanismo. O pesquisador cita a Transhumanist Declaration, que "visa à possibilidade de expansão do potencial humano ao superar o envelhecimento, deficiências cognitivas, sofrimento involuntário e nosso confinamento no planeta Terra". Além disso, a declaração também insiste que indivíduos devem ter "uma ampla escolha pessoal sobre como capacitam suas vidas" e, nesse sentido, ressalta O'Gorman, entende-se que a vida humana atual é menos capacitada ao estar atrelada ao corpo biológico. Assim, para o transumanista, próteses tecnológicas nos possibilitariam superar nossas limitações naturais, enquanto um interlocutor mais cético talvez visse em implantes uma forma trágica de alteração da natureza humana.

O'Gorman acredita que ambas as visões falham ao não entender que o humano sempre foi tecnológico. "Ver nossa espécie dessa forma ajuda a amenizar retóricas polêmicas sobre prostética, assim como nos lembra que, em último caso, nós podemos fazer escolhas sobre quais próteses tecnológicas queremos abraçar ou descartar, incluindo próteses de memória". Aliás, seu artigo começa, justamente, com uma citação do conto de ficção científica Johnny Mnemonic, de William Gibson: "E essa era a natureza do meu jogo, porque eu gastei boa parte da minha vida como um receptáculo cego a ser preenchido com o conhecimento de outras pessoas e então esvaziado, jorrando linguagens sintéticas que nunca entendi. Um garoto muito técnico, com certeza".

Ao considerar o conceito de demência digital, entendemos que ferramentas digitais são não-humanas ou quiçá até mesmo desumanas. Gadgets passam a ser vistos como algo fora da natureza ou da parte orgânica da memória humana, assim como a escrita para era algo negativo para Thamus e Sócrates - especialmente se for acreditar que existe uma essência ou algo inato ao homem sem próteses. O'Gorman cita, então, uma passagem de Technics and Time, na qual o filósofo francês Bernard Stiegler sugere que "o humano inventa a si mesmo tecnicamente ao inventar a ferramenta - se tornar exteriormente tecno-lógico". 

O pesquisador conclui que, dessa forma, "não há humano (...) sem próteses (...) nós sempre fomos técnicos" e que invenções humanas como próteses ou a ciborguização são um "método de arquivação: o que é criado fora do homem permanece como uma matéria de registro e cada vez mais se torna o próprio registro ou arquivo, a memória artificial ou exterior em si". Isso pressupõe que "não há humano sem um arquivo, humano sem memória prostética. Qualquer conceito que entende a leitura ou a escrita como algo antinatural para o humano perde a noção de que a única coisa natural no cérebro humano é sua habilidade de se adaptar rapidamente a ambientes e implementações tecnológicas  mutáveis. Com isso em mente, contrariando as sugestões de Maryanne Wolf e outros cientistas cognitivos, não há nada mais natural para o cérebro humano que se adaptar às demandas técnicas da leitura".

Referências

BAITELLO JR, Norval. O pensamento sentado. Sobre glúteos, cadeiras e imagens. Editora Unisinos: São Leopoldo, 2012
BOCK, Maicon. Dilema de Mestre: atenção do aluno dura só 20 minutos. Zero Hora, 18/07/2011 
NAVARRETE, Helena Maria Cecília. Plano Ceibal: Praça e escola como ambientes comunicacionais. 8º Interprogramas de Mestrado, Faculdade Cásper Líbero. 
O'GORMAN, Marcel. Taking care of digital dementia. CTheory, 2015
SILVA, Tiago Mota e. Mídia como brinquedo: considerações sobre a apropriação lúdica da tecnologia por estudantes do primeiro ano do ensino fundamental10º Interprogramas de Mestrado, Faculdade Cásper Líbero. 2014 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Ceticismo e desespero, Emil Cioran

The Triumph of Doubt (1946), Victor Brauner 


Duvidar de tudo e continuar a viver - eis um paradoxo que, todavia, não é dos mais trágicos, já que a dúvida é muito menos intensa e angustiante que o desespero. A mais frequente é a dúvida abstrata, na qual é envolvida só uma parte do ser, ao contrário do desespero onde a participação é orgânica e total. Um certo diletantismo e algo de superficial caracterizam o ceticismo face ao desespero, este fenômeno tão complexo e estranho. Posso duvidar de tudo e opor ao mundo um sorriso de desprezo, mas isso não me impedirá de comer, de dormir tranquilamente ou de me casar. No desespero, do qual não se apanha a profundidade senão vivendo-o, esses atos são possíveis somente a preço de esforços e sofrimentos. Nos cumes do desespero, ninguém possui mais o direito ao sono. Desta maneira, um desesperado autêntico nunca esquece nada da sua tragédia: a sua consciência preserva a dolorsa atualidade da própria miséria subjetiva. A dúvida é uma inquietude ligada aos problemas e às coisas, e provém do caráter insolúvel de todas as grandes questões. Se os problemas essenciais pudessem ser resolvidos, o cético retornaria a um estado normal. Que diferença com a distuação de um desesperado o qual, mesmo resolvendo todos os seus problemas, jamais se tornaria menos inquieto, já que a sua inquietude brota da estrutura do seu ser. No desespero, a ansiedade é imanente à existência. Não são os problemas, então, mas as convulsões e as chamas interiores que torturam. Pode-se lastimar que nada neste mundo esteja resolvido; ninguém, todavia, se suicidou por isso.

Emil Cioran. Sur les cimes du désespoir.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

O animal ciente da própria morte

Vigeland Park (Oslo, Noruega)


Conceitos decorrentes da concepção cristã do mundo: a morte. Trecho de transcrição de aula ministrada no curso "A Imagem do Mundo", de Vilém Flusser. Originalmente disponível em FlusserBrasil.
Creio que a famosa frase de Marx "Primeiro comer, depois filosofar" deveria ser reformulada para rezar: "Primeiro aceitar a morte, depois comer, filosofar ou fazer qualquer outra coisa".
Se alguém me for despertar no meio da noite e perguntar, o que distingue o homem do animal, responderia sem refletir: a consciência do homem de sua própria morte. Sem dúvida seria uma resposta irrefletida. Sem dúvida há uma série de distinções mais objetivas entre o animal e o homem. Sem dúvida a consciência de sua própria morte não está sempre presente no consciente despertado. Portanto dizer que o homem é um animal que sabe que vai morrer é uma informação irrefletida. Ela tem, no entanto, uma qualidade que nenhuma reflexão, por matura que seja, consegue produzir: ela tem a qualidade de autenticidade. Irei mais longe e direi que o saber da nossa morte é o único pensamento autêntico do qual somos capazes, todo o resto, todo esse enorme resto de ideias, de vontades, de sentimentos, de imaginações, é pose. É pose em maior e menor grau, é sincero em diluições mais ou menos adulteradas, justamente porque se desenrola diante do pano de fundo inalterável e inexortável da certeza autêntica da morte. A própria certeza da morte torna todo o resto pálido e patológico, uma tentativa desesperada e inautêntica de fugir à morte. E essa situação do homem é que torna tão atraente intelectuamente e sentimentalmente a famosa frase de Heidegger, intraduzível para o português: "Wir sind zum Tode da", que transfiro da seguinte forma: "Vivemos neste momento e sempre para podermos morrer e até a morte".
A psicologia moderna, especialmente a freudiana, insinua, se não o diz abertamente, que tudo aquilo que chamamos de civilização é uma sublimação de um terror reprimido. Em outras palavras, que a civilização é produto de uma doença. Todas as grandes e belas obras do espírito humano, os majestosos edifícios palpáveis da arquitetura tanto quanto os edifícios impalpáveis da ciência, da filosofia, da teologia, e também os edifícios mais transitórios da política e da economia, são outros tantos sintomas da neurose e psicose fundamental: o terror da morte. São sinais da loucura coletiva e individual da humanidade. E esta loucura é resultado da incapacidade do homem de suportar a certeza da morte. Se for a dar crédito aos psicanalistas, diria que o que distingue o homem do animal é o fato do homem saber de sua própria morte e a consequente loucura do homem. Mas se a fuga do homem da morte para a civilização é uma loucura, como dizem os freudianos, ou se é uma mentira, como dizem os existencialistas, então é uma loucura bela e uma mentira grandiosa. Se é assim, não quero sarar, nem quero ter a vivência da autenticidade. Porque sarar da loucura da civilização, desmentir a mentira da cultura, seria volver ao estado são e autêntico da brutalidade animalesca. Sou portanto contrário às tendências modernas de encarar a morte de frente, sou contrário aos ensinamentos filosóficos da moderna psicologia e aos ensinamentos psicológicos da moderna filosofia. Sou reacionário por esperança de que todos esses movimentos atuais, que me parecem bárbaros, são passageiros. Voltará, assim espero, o dia quando a morte reaparecerá em seu aspecto tradicional cristão como porta para a eternidade.

(...)

A situação do homem é absurda. Tudo que ele faz, ou quer, ou sente, ou pensa carece de sentido, porque está condenado de antemão ao nada, à morte. O homem é derrotado em tudo pelo nada e é derrotado não somente na totalidade de sua vida, pela morte, mas também em cada instante individual, pelo nojo. Esse nojo é inevitável, é o produto da certeza da morte e portanto da carência de sentido de qualquer ação, de qualquer pensamento, de qualquer sentimento. É, no entanto, possível aceitar a morte, aceitar o nojo, resolver-se a morrer, resolver-se a viver com o nojo, viver quand-meme, a despeito da morte e do nojo. Nisto reside a autenticidade. A outra possibilidade é recusar-se a morrer, recusar-se a sentir nojo, recusar-se a viver quand-meme. E essa recusa pode tomar a forma de suicídio metafísico, o mergulho na fé, ou a forma do suicídio físico, o mergulho no rio. Nisso reside a decadência, a não-autenticidade. A diferença entre essas duas mentalidades da existência não pode ser discursada, tem que ser vivida.

Confesso que essa ética nojenta e horrorosa é amplamente modificada por diversos pensadores existencialistas, Jaspers por exemplo. Mas essas modificações não me parecem autênticas, se me permitem usar essa palavra depois daquilo que foi dito. Mas o que falta ao existencialismo em força ética compensa pela força estética, pois é no campo do belo e da arte que a autenticidade adquire o seu significado. A interpenetração entre a existência e aquilo que está diante da mão, quando autêntica, não resulta somente em conhecimento, mas resulta, como já disse, na transformação daquilo que esteve diante da mão em instrumento vivido. Em outras palavras, o conhecimento é uma fase de um processo, e a obra de arte é outra fase do mesmo processo, a sabar do processo da vivência dentro da autenticidade. A vida da existência autêntica consiste, por assim dizer, em uma série de vivências criadoras. Tudo aquilo que esteve diante da mão, mas agora se tornou compreendido dentro da existência, isto quer dizer todo o passado de todas as existências autênticas, é testemunha (Zeug und Zeuge) da força criadora da autenticidade.

O conjunto da civilização é testemunha do produto criador da conversação autêntica entre as existências, e como tal, em certo sentido, aniquila a morte. É verdade que as obras não existem no mesmo sentido como existem as existências. Elas estão à mão, não existem sensu stricto, mas na forma de ser que as obras têm elas superam a morte. A estética do existencialismo é, depois de sua epistemologia, o que mais me atrai nessa corrente de pensamento. Creio que há, nessa concepção imediata e vivida do processo da criação artística, o germe para uma nova atitude para com a morte. E será talvez possível, através da estética existencialista, vislumbrar uma nova ontologia, que permitirá enfrentar a morte sem sermos aniquilados por ela.

Para os pensadores da idade moderna, que não repousam sobre a morte, a ética e a estética se relativizam, pulverizam. Não lhes falarei das éticas ocas e sem sangue, sem simpatia e sem pulsação que caracterizam esses professores que nos querem ensinar o bem pelo método matemático com demonstrações com papel e lápis. Perto desses coitados, desses kantianos e benthamitas, desses lockeístas e leibnizistas, com suas concepções do summum bonum e de um Deus necessário e assim por dainte, até a horrível ética dos existencialistas e de seus precursores como Schelling, Schopenhauer e Nietzsche, é tolerável, por ser pelo menos autêntica. Tampouco falarem da estética da idade moderna. Direi somente que com a idade média morreu o último estilo artístico autêntico do ocidente, o estilo gótico, e que o primeiro estilo autêntico ocidental ressurgiu depois da morte do mundo moderno e com o nascer do espírito existencialista, a saber as artes do fim do século dezenove. Não direi o absurdo de que a Europa não produziu obras de arte durante a idade moderna, mas direi que o espírito moderno fez o possível a sufocar a força criadora, que continuou não graças, mas a despeito desse espírito de pergaminho. Os diversos renascimentos e classicismos são prova da mania seca e murcha do espírito ocidental durante a idade moderna, e as grandes obras realizadas durante essa época são prova do vigor criador da Europa a despeito dessa mania. 

sábado, 31 de janeiro de 2015

Nossa comunicação



Para pensar a mídia, as novas tecnologias, o ensino e seu formato, as diferentes formas de comunicação e discursos, a política e o conhecimento:

O discurso teatral é o mais antigo, e antecede a história. É ele o discurso do patriarca que transmite os mitos da tribo à geração nova, é o discurso da avó que conta as lendas aos netos. O que caracteriza este tipo de discurso é o fato dos receptores encararem o emissor: formam um semicírculo em torno dele. Estão em posição de responsabilidade: vê-se obrigado a respostas. O teatro é discurso aberto para diálogos. A contestação, a reviravolta de discurso em diálogo, a "revolução", está no programa do teatro. Revoluções são possíveis em torno da fogueira e da lareira.
A partir do neolítico tardio isto passa a ser desvantagem. Quando se trata de empreendimentos coletivos como o são as construções de canais e de cidades, o que se pretende não é o diálogo, mas a obediência. A sociedade deve ouvir as mensagens sem poder contestá-las. A fim de conseguir tal método de discurso, é preciso que o emissor se torne inacessível para os receptores. É o método do discurso piramidal que vai ser introduzido. O qual vai formar a base comunicológica da história do Ocidente. Consiste ele na introdução de relais hierarquicamente organizados entre o emissor e os receptores. O primeiro exemplo de pirâmide é o reino sacerdotal. Nele as mensagens partem de um "autor" inacessível (um deus), e passam por "autoridades", relais cuja função é de manterem tal mensagem "pura" de ruídos, e de barrarem o acesso ao emissor para os receptores. O clima de responsabilidade, prevalescente no teatro, é subtituído pelo clima da tradição e da religiosidade. Tradição, porque os relais tra-dizem, e "religião" porque religam os receptores com o autor da mensagem. Tal clima do neolítico tardio continua caracterizando as pirâmides atuais, como sejam a Igreja, o Estado, o exército, os partidos políticos, as empresas.
A desvantagem de tal estratégia comunicativa é que torna difícil o diálogo. A estratégia é boa para o armazenamento de informações, mas má para a elaboração de informações novas. O tecido social estagna. Daí terem sido empreendidas reformas na pirâmide durante o renascimento. O propósito era o de preservar a eficiência da pirâmide, e simultaneamente abri-la para diálogos. Os relais foram transformados em círculos dialógicos, mas conservaram sua organização em hierarquia. O resultado foi o discurso em árvore. É ele o discurso característico da modernidade. A substituição das autoridades por círculos dialógicos subdividiu o discurso piramidal em ramos (especialidades), que tendiam a se subramificarem e a se entrecruzarem. Tal re-estruturação se revelou extremamente fértil. Todo ramo do discurso passou a produzir informações novas em progressão crescente. A dinâmica do discurso em árvore inundou a sociedade com verdadeira enchente de informações novas. Mas havia consequência imprevista. Todo círculo dialógico elaborou código específico no qual a nova informação era sintetizada. As informações destarte codificadas passaram a ser decifráveis apenas para os "especialistas" (participantes do ramo). Destarte as mensagens do discurso em árvore tendiam a ser indecifráveis para a sociedade como um todo. O que "resacerdotisou" e "reautorizou" o discurso. Os "leigos" não mais captavam as mensagens provindas das várias árvores: nem as da física nuclear ou da microbiologia, nem as das técnicas avançadas, nem as da arte de vanguarda. De modo que, a partir do século 20, os discursos em árvore deixavam de ter recepção geral, e passaram a ser absrdos enquanto métodos comunicativos.
A solução do problema é traduzir as mensagens dos discursos em árvores para códigos socialmente decifráveis. Construir aparelhos que "transcodam". O resultado disso é o discurso anfiteatral. É ele característico da autalidade.Os aparelhos da comunicação de massa são caixas pretas que transcodam as mensagens provindas das árvores da ciência, da técnica, da arte, da politologia, para códigos extremamente simples e pobres. Assim transcodadas, as mensagens são irradiadas rumo ao espaço, e quem flutuar em tal espaço e estiver sincronizado, sintonizado, programado para tanto, captará as mensagens irradiadas. A "cultura de massa" é o resultado deste método de comunicação discursiva. A transcodação e irradiação de mensagens resulta em transformação da sua estrutura original. As árvores funcionam linearmente, os media multidimensionalmente. Se admitirmos que a linearidade é a estrutura da história, os media se apresentam como comunicação pós-histórica. São caixas pretas que têm a história por input. E a pós-história por out-put. São programados para transcodarem história em pós-história, eventos em programas. 
Na situação atual as quatro formas de discurso co-existem. Mas os discursos teatrais (escolas, teatros etc), e os discursos piramidais (Estado, partido etc), estão em crise; são anacronismos comunicológicos dificilmente assimiláveis ao tecido da comunicação dominante. O exemplo mais óbvio do problema é o da família, a qual é pirâmide e teatro. Os discursos em árvore continuam se ramificando, e estão acoplados aos discursos anfiteatrais que transcodam suas mensagens. Destarte os mass media estão se tornando fontes preferenciais das informações disponíveis. São eles os que codificam o nosso mundo. Vivemos em clima pós-histórico. 
O discurso teatral programa diálogos circulares. O discurso piramidal visa excluir diálogo de todo tipo. O discurso em árvore programa diálogos circulares para especialistas. O discurso anfiteatral programa diálogos em rede. O teatro exige que se dialogue a mensagem, a fim de produzir informação nova. A pirâmide proíve o diálogo. A árvore exige competência específica, elitária, para se poder participar da elavoração de informação nova. O anfiteatro exige que a informação irradiada seja transformada dialogicamente em mingau amorfo, em "opinião pública", a fim de servir de feedback aos aparelhos emissores. A meta dos diálogos em rede não é a produção de informação nova, mas o feedback. Os aparelhos elaboraram métodos específicos (publimetrias, marketing, pesquisas da opinião, eleições, políticas etc); para recaptarem o feedback. "Democracia" no sentido de diálogo produtor de informação que não seja elitário é possível somente no teatro. Na situação atual, democracia é impossível. A sensação da solidão na massa é consequência disto. A democracia não está no programa.
Pois reformular a ciência em sentido dialógico implica reformular o tecido comunicológico da sociedade. Democratizá-lo. Mais que tarefa epistemológica, é pois tarefa política. Trata-se de tornar ciência politicamente responsável. Transformar em método a consciência que o saber é significativo apenas se for ponto de partida para a ação republicana. Mas, para que tal reformulação possa ser feita, é preicso que a república exista. E a república é o espaço público dos diálogos circulares. Atualmente tal espaço não existe. Todo espaço está ocupado pelas irradiações anfiteatrais e pelo diálogo em rede. Vista internamente, a crise da ciência se apresenta como crise epistemológica, mas vista a partir da sociedade, apresenta-se como crise estrutural: não é possível dialogisar-se o conehcimento, se não há espaço político para tanto. O caráter discursivo e elitariamente dialógico da ciência se deve, estruturalmente, ao seu acoplamento com os meios de comunicação de massa. Para que se faça nova teoria de conhecimento intersubjetivo, é preciso que se disponha de espaço para a intersubjetividade. A crise atual da ciência deve ser, pois, vista noc ontexto da situação comunicológica da atualidade. Enquanto não houver espaço para a política, para dialógos circulares não elitários, a crise da ciência se apresenta insolúvel.
Vilém Flusser. Pós-História. Vinte instantâneos e um modo de usar. Annablume, 2011. p. 74-79 

domingo, 18 de janeiro de 2015

Da Imortalidade, Vilém Flusser

Papillon, de Grace Chen


O único bicho que concebe a morte é o homem. Por isto não pode haver suicídio entre os animais (por mais que o contrário seja afirmado por fábulas e lendas). Mas o conceito da morte varia ao longo da história humana. Escrever tal história, tendo em mira tal variação, seria sem dúvida empresa aventurosa (e talvez divertida). A dificuldade é que pouco ou nada sabemos a respeito da morte paleolítica, além do detalhe revelador (e inquietante) de que os Neandertais enterravam seus mortos sobre camas de flores. No entanto, é possível imaginarmos o seguinte itinerário para o historiador do conceito da morte: procurar acompanhar as evoluções e involuções de como o homem e a sociedade se identificaram ao longo dos milênios (as antropologias sucessivas e mutuamente sobrepostas) e localizar o conceito da morte em tal contexto.  Isto porque indubitavelmente o conceito (ou pré-conceito) da morte forma o próprio núcleo de toda antropologia (como afirma a primeira sentença deste artigo). Ora, é relativamente fácil captar o tema central, variado pelas várias antropologias: sou corpo ou tenho corpo?

Posta assim em termos crus, a morte pode ser concebida (ao longo da história e atualmente) apenas de duas maneiras: enquanto desintegração do corpo ou desintegração do possuidor do corpo. Mas a coisa não pode ser posta assim cruamente. Porque a formulação aqui proposta pressupõe desde já toda a evolução milenar da antropologia. A formulação é tardia, e o termo "desintegração" nela contido o revela. Muito provavelmente os caçadores paleolíticos não se tomavam por inteiros, mas por integrados (na tribo e no ambiente vital, Lebenswelt, no qual a tribo se movia). E como não eram inteiros ("indivíduos", "identidades"), um possuidor do corpo não era concebível. A morte dizia respeito apenas ao corpo. No entanto, dada a integração do corpo no que atualmente chamaríamos de "ecossistema", o termo "desintegração" não tem muito sentido. Por certo: o ecossistema como um todo pode desintegrar, mas tal catástrofe não podia ser chamada de desintegração, mas de re-integraão ao conjunto ambiente. O Antigo Testamento capta tal re-integração ao dizer: terra à terra, pó ao pó. A morte paleolítica não é pois concebida enquanto ponto final, mas enquanto ponto em ciclo.

Um futuro historiador da morte deverá provavelmente partir de considerações como estas. Mas o presente artigo pode perfeitamente abandonar o percurso neste ponto. Porque (por grande surpresa) reconhecemos a morte paleolítica (aqui penosamente e duvidosamente reconstruída) à nossa própria morte. Se adaptarmos os termos um pouco à nossa própria situação, a descrição é adequada. Não precisamos acompanhar a evolução e involução da antropologia através dos milênios: a antropologia paleolítica é a nossa. Toda a problemática milenar do possuidor do corpo (seja ele mortal ou imortal) não mais nos diz respeito. Mas dizer que estamos voltando para o paleolítico (ou que estamos saindo finalmente dos dez mil anos de neolítico) é dizer que tudo deve ser repensado. Embora possamos sustentar que os dez mil anos de proto-história e de história não passam de interrupção da a-história, devemos admitir que pré-história e pós-história não são a mesma coisa. Ao voltarmos para o paleolítico, devemos repensar o conceito da morte que volta a ser o nosso.

Partamos da afirmação que o caçador paleolítico "ainda" não se tomava por indivíduo e de que, assim, já não nos tomamos. Os milênios que nos separam do caçador (ou, no caso do caçador amazoniano, os milhares de quilômetros) são, deste ponto de vista, o trecho da individualização progressiva. O trecho ao longo do qual o individualismo ia se tornando sempre mais grosseiro ("rugged"). Mas afirmar isto é curioso. Porque individualização progressiva significa divisão progressiva. "Indivíduo" é o que, em determinado estágio do progresso de divisão, se recusa a ser dividido. Não esqueçamos que o "indivíduo" é a tradução latina do "átomo" grego. De maneira que o caçador não é indivíduo, porque "ainda" não divide, e nós "já" não o somos, porque sabemos que nada é indivisível. "Dividir" e "cortar em rações" significam o mesmo gesto. De maneira que o caçador não é indivíduo, porque "ainda" não raciocina, e nós "já" não o somos, porque raciocinamos até a raiz, radicalmente.

Não exageremos: raciocinar, dividir, cortar em dois é gesto humano, e o caçador o executa. A prova: fabrica facas. E sobretudo o caçador executa o corte fundamental entre sujeito e objeto: abre o abismo da alienação entre o homem e o mundo. Aliás, os termos "dividir", "dois", "duvidar", "Deus" e "diabo" provêm da mesma raiz "d.v", a qual, embora neolítica (indogermânica) aponta horizontes precedentes. No entanto, a ferida aberta pela faca de pedra entre o mundo e o homem não é mortal, já que permite aos homens se integrarem no mundo por cima do abismo. Em termos mais prosaicos: a racionalidade articulada na fabricação da faca não impede a irracionalidade do rito e da magia. Embora pois o caçador, sendo homem, seja bicho alienado, sabedor da morte, concebe a morte não como ponto final, mas como ponto em ciclo.

Retificado o tiro, podemos afirmar que o gesto de cortar foi se refinando a partir do neolítico, e que as rações cortadas foram se tornando sempre mais finas. Em outros termos, tudo que era cortável era sempre melhor definido. No entanto, nem tudo era cortável. As facas se dirigiam contra o mundo tornado objetivo pela faca paleolítica (cortavam os objetos em rações sempre mais finas), mas falaram em direção ao sujeito dos objetos. A partir daí, aconteceu algo deveras espantoso. Os recortes finíssimos dos objetos (todas essas partículas de partículas) eram tão minúsculos que não mais eram "concebíveis" enquanto objetos: os dedos não mais os concebiam. Não mais tinha sentido afirmar se tais particulas são ou não objetivas. Isto rebateu sobre o sujeito até então mal raciocinado. Raciocínio neuro-fisiológico, psicoanalítico, existencial (e outro) passou a recortar o jeito em rações de partículas como actomas, decidemas, bits de informação, saltos sobre fendas do sistema nervoso. Ora, isto não apenas destruiu todo conceito de "indivíduo" (nenhum núcleo duro do sistema psico-somático resistiu à faca da razão), mas destruiu igualmente a distinção entre sujeito e objeto. Neutrino é tão objetivo ou tão pouco objetivo quanto o é decidema, ou decidema é tão subjetivo ou tão pouco subjetivo quanto o é neutrino. Em meados do nosso século, a razão cortadora tinha reduzido tanto objeto quanto sujeito à poeira da análise calculadora, e as facas não têm mais o que cortar doravante. O paleolítico foi restabelecido: morte enquanto desintegração não mais é concebível.

O que leva estas considerações a refletir sobre a afirmação de que o homem paleolítico não era inteiro, mas integrado. Sem dúvida, estamos voltando para o paleolítico no sentido de termos perdido nossa integridade. Estamos desintegrados enquanto possuidores de corpo e conceitos como "alma", "espírito", "o Eu" etc, não mais nos dizem respeito. Mas estaríamos sendo integrados em algo que nos abarcaria, por termos rompido a casca do Eu? A resposta merece breve excurso:

A desintegração da individualidade (a descoberta de que tudo que se passa "dentro do sujeito" pode ser dividido em partes sem jamais resultar em núcleo indivisível) levou ao abandono da distinção entre sujeito e objeto, "dentro" e "fora". Isto, por sua vez, tornou possível simularmos os processos "interiores" (pensamentos, decisões, projetos etc) em fenômenos "exteriores". Por exemplo: se todas as nossas decisões se revelam, sob análise, enquanto computações de decidemas pontuais, torna-se possível construir instrumentos que decidem. Mas sabemos (graças a análises precedentes) que instrumentos rebatem sobre quem os utiliza. Por exemplo: alavancas são máquinas que simulam braços, mas com o tempo o utilizador de alavancas move os braços como se fossem alavancas. De maneira que a simulação dos processos outrora tidos por "interiores" (mentais) em instrumentos "exteriores" (físicos) leva necessariamente a um comportamento "mental" mecânico e calculado. O resultado disto é que cai por terra a distinção entre "corpo" e "mente". Os dois se confundem, e afirmar que a mente é "como o corpo se move", ou que o corpo é "mente palpável" passa a afirmar o mesmo de dois pontos de vista. Ao se desintegrar o possuidor do corpo (a mente), desintegrou-se igualmente o corpo.

Dizer que o corpo se desintegrou parece afirmar o absurdo. Afinal, podemos observar mais ou menos nitidamente corpos animais e humanos, inclusive o nosso próprio, e não temos dificuldade em distingui-los. Mas reflexão mais atenta revelará a desintegração aqui afirmada. Tornou-se impossível definir o corpo humano "de dentro para fora" e "de fora para dentro". Os instrumentos que nos cercam são prolongamentos do corpo (automóvel prolongamento de pernas, TV prolongamento de olhos). Perda de automóvel é como amputação de perna. Esta máquina de escrever é parte mais vital de meu corpo do que meus cabelos ou unhas. Igualmente pode se afirmar que os instrumentos invadem o corpo. Óculos seriam interior ou exterior do corpo? E dentaduras artificiais? E marca-passo? Ora, se não mais podem ser distinguidos corpo e não-corpo (animado e inanimado), o conceito da morte enquanto desintegração do corpo perdeu sentido. Posso substituir um órgão do corpo após outro por instrumentos, e destarte evitar a morte. Aliás, a definição da morte clínica se torna impossível. Por outro lado, a minha voz continuará funcionando em fita de áudio, e meu movimento em fita de vídeo (isto é, meu corpo continuará agindo) depois do enterro do corpo. Fim do breve excurso: ao desintegrar-se a "mente" (o possuidor do corpo), desintegrou-se também o corpo, a morte enquanto desintegração perdeu sentido, e o paleolítico está restabelecido.

Uma vez que o outrora chamado "complexo psico-somático" se revela computação de partículas pontuais (das quais não tem sentido afirmar se são mentais ou físicas, subjetivas ou objetivas), surge a questão seguinte: como tal computação se processa? O que envolve o conceito de "campo"?

Por certo, o complexo "psico-somático" pode ser aproximado de diversos pontos de partida. Este artigo optará pelo approach biológico e comunicológico, para depois procurar sintetizar o resultado. Em época não muito distante, quando corpos vivos eram tidos como entidades disponíveis, o problema era explicar a origem dos corpos e a posição do corpo humano no contexto dos corpos vivos (darwinismo). O problema atual é outro. De um lado, os corpos vivos são vistos enquanto excrescências provisórias de corrente genética "imortal", enquanto fenótipos que assentam sobre genótipos. Por outro lado, os organismos são vistos enquanto integrados em ecossistemas, cada qual ocupando um nicho, de maneira que os organismos são funções de relações complexas. Para exemplificar os dois aspectos: Borboleta é determinada computação de genes tornada visível e palpável, que funciona como órgão sexual de determinadas plantas. Ora, isto é visão de "campo": os organismos vivos são realizações passageiras de virtualidades contidas em campos, e tais realizações ocorrem ao se juntarem (computarem) as virtualidades distribuídas no campo. Organismos vivos podem ser concebidos enquanto adensamentos (curvaturas) no campo genético e ecológico que ondulam. Quando surge determinada onda ("organismo") falamos em nascimento, e quando sossega, em "morte". A morte é, pois, apenas fenomenal (aparente), já que o campo a ignora. O que vale para todos os organismos, inclusive o humano.

Mas há uma diferença entre o organismo humano e a maior parte dos demais: o homem transmite informação adquirida, não geneticamente programada. Os derradeiros defensores da "mente" se agarram a isto: "mente" seria produção, armazenamento e transmissão de informação não geneticamente programada, portanto "anti-vida". Atualmente se tornou possível (pelo menos em tese) analisar os processos "mentais" no sentido de "processos de aquisição de informação", decompô-los em bits, e mostrar como a computação de tais bits se processa. Surge a imagem de uma rede composta de "canais" pelas quais bits de informação transitam, para se combinarem em nós (cruzamentos), e lá constituírem informações novas (variações, mutações ainda não realizadas anteriormente). Em outros termos, há campo de informações virtuais que é estruturado em rede, e nos cruzamentos dos fios ocorrem realizações de informações outrora chamados "Eus". Não é possível, neste artigo, entrar na questão de definir "informação" no sentido aqui empregado. Basta dizer que se trata de fenômeno convencionado. Com efeito, as simulações de "mente" (as inteligências artificiais) são instaladas em redes de canais reversíveis, formam cruzamentos em tais redes, realizam informações novas, portanto simulam "Eus".

Os dois approaches (o biológico e o comunicológico) coincidem, se recobrem e formam uma única imagem: a de campo ondulatório estruturado em rede. Podemos visualizar tal imagem em tela de computador sob forma da dita "rede de arames": o que outrora era chamado "corpo", e o que outrora era chamado "mente" aparece em tal imagem enquanto curvaturas, dentro das quais os fios se condensam. E se "animarmos" tal imagem, veremos como tais curvaturas surgem para depois desaparecerem. Ora, estaremos visualizando a imagem da antropologia tal como se impõe atualmente: somos realizações passageiras de virtualidades distribuídas sob forma de rede em campo. E somos tanto mais reais (concretos) quanto mais densas as computações de virtualidades que nos constituem. Somos integrados em campo estruturado de virtualidades.

Não exageremos o perfume paleolítico que emana desta nossa antropologia: não inteiros, mas integrados. Porque o que sustenta essa nossa antropologia pós-histórica é a visão provavelmente estranha ao caçador de mamutes: a visão da entropia. Concebemos (e começamos a vivenciar) o mundo ambiente e nossa própria existência enquanto amontoado de partículas que tendem a se distribuírem sempre mais uniformemente. Por certo, isto pode ser considerado um conceito da morte: tudo tende para a "morte térmica", a perda de toda informação, o equilíbrio, o provável. Mas isto não é o conceito da morte visado  neste artigo, pela razão seguinte: podemos constatar, em toda parte, inversões da tendência para a entropia, epiciclos nos quais o tempo corre em sentido inverso: do futuro para o presente. Tais epiciclos negativamente entrópicos são responsáveis por todas as realizações de virtualidades (computações, improbabilidades), desde o átomo de hidrogênio e os gigantes vermelhos, até o complexo "psico-somático" de cuja morte aqui se trata. O problema é: como surgem tais improbabilidades e como desaparecem? Isto é o verdadeiro problema da morte e da liberdade no contexto atual, e o caçador paleolítico provavelmente não o tinha. 

Para inteligências artificiais (e para as nossas, simuladoras de computadores) o problema é falso. Dada a soma das virtualidades distribuídas em campo (soma astronômica embora finita), e dado o tempo disponível para a computação de tais virtualidades (na ordem de 16 bilhões de anos), as computações mais improváveis ocorrerão necessariamente por acaso. Por certo, o sistema neurocerebral é de tal complexidade improvável que é difícil admitir que surgiu ao acaso. Mas se tomarmos em consideração a soma das partículas envolvidas, e o tempo durante o qual tais partículas se combinaram e recombinaram, a emergência dos sistema a partir da entropia geral passa a ser necessário acaso. Mas tal visão calculadora, probabilística e aparelhística da criatividade não basta (por correta que seja). Dizer que um milhão de chimpanzés batendo máquinas escreveriam, com o tempo, a Divina Comédia por acaso necessário não explica Dante. Porque Dante já escreveu vários bilhões de anos antes dos chimpanzés (os outros word processors). Somos obrigados a admitir que a liberdade é aceleração altamente improvável do acaso necessário, e que, no homem, ocorreu dupla inversão da entropia: somos realizações aleatória de virtualidades que realiza deliberadamente. Dizer isto é articular um mistério muito maior que o da "alma imortal" ou "do espírito libre", e é bom admiti-lo. E o nosso conceito da morte se liga a isto: morte enquanto horizonte da liberdade.

Resumamos o percurso: durante a época proto-histórica e histórica a morte era concebida enquanto desintegração do corpo e/ou do possuidor do corpo. Por exemplo: o possuidor do corpo era tido como imortal para minimizar a morte do corpo. Na pré-história, muito provavelmente o conceito da morte era outro: como o homem se sentia integrado em contexto e não formando entidade inteira, a morte era concebida enquanto re-integração no contexto. Tudo indica que a época história está por encerrar-se. Que estamos de alguma maneira voltando para o paleolítico a-histórico e não-raciocinante. Também o conceito atual da morte aponta tal volta. Concebemos a morte no além da distinção entre corpo e mente, e a concebemos relacionalmente. Mas refletir sobre o conceito da morte não basta. Necessário é vivenciá-la.

Da Imortalidade II

Conceito e vivência se co-implicam. O fato óbvio de que não podemos ter vivência da própria morte (onde está minha morte, não estou eu, e onde estou, não está minha morte) ficou ofuscado durante milênios pela noção de um possuidor do corpo testemunha da morte do corpo. Atualmente (e malgrado a sobrevivência de ideologias neolíticas), a própria morte é vivenciada enquanto horizonte jamais alcançável, já que se afasta ao ser aproximado. O que permite vislumbrar o impacto existencial da morte é a vivência da morte do outro. E, conforme o argumento seguinte se esforçará por mostrar, tal vivência é a da rede.

Embora vivências sejam dificilmente quantificáveis (experimentos nesta direção com ratos e insetos não são concludentes), podemos afirmar que a vivência da morte do outro está diretamente proporcionada com a proximidade de tal outro. A morte do meu vizinho terá impacto maior que a morte de 10.000 chineses. Sem entrar nos problemas da proxêmica ("proximidade" é conceito espaço-temporal difícil), pode ser afirmado que tal redescoberta da morte enquanto sempre "morte do outro" contribui fortemente para a decadência das ideologias modernas (humanistas). Querer "amar a humanidade" ou querer "lutar pelo povo" se revelam não apenas insinceridades existenciais, mas sobretudo irresponsabilidades. Dada a vivência concreta da morte, sou responsável pelo outro em função da sua proximidade. O termo "competência" (tão importante no contexto atual) entra em jogo. Minha competência tem determinado âmbito que pode ser aumentado por disciplinas várias, mas que resta sempre limitado. Ninguém jamais (mesmo munido de inteligências artificiais) pode ser competente para fazer qualquer coisa a respeito da "humanidade" ou do "povo". Todo engajamento neste sentido é necessariamente demagogia irresponsável. Curiosamente, isto faz ressurgir a noção do "amor ao próximo", central no judeu-cristianismo.

Se analisarmos fenomenologicamente a vivência da morte do outro, constataremos que se trata de vivência de perda. A morte do outro nos diminui, empobrece. Atualmente é estupidez querer distinguir entre "substância" e "acidente", mas podemos aventurar a afirmação de que a morte do outro é perda tanto mais substancial, quanto mais próximo é o outro. Em casos de proximidade íntima, a morte do outro pode equivaler à perda da substância toda: com a morte do próximo, eu deixo de existir. E esta vivência do nada que se abre com a morte do próximo se manifesta enquanto sensação do desaparecimento do mundo: nada mais interessa, e portanto, nada está lá objetivamente. A distinção entre sujeito e objeto caiu por terra intelectualmente, a experiência da morte do outro confirma tal interdependência existencialmente.

Ora, isto implica que sou o que sou em função do outro. Que "eu" é o que é chamado de "tu", e que tal "eu" é tanto mais concreto, quanto mais intenso o chamamento por parte do outro. A imagem que isto evoca é a da mesma rede que já tem sido mencionada na discussão precedente. O "eu" é cruzamento de fios intersubjetivos, e quando um nó se desfaz ("morte do outro"), o cruzamento "eu" fica com fios soltos no vazio, e ameaçado de desfazer-se. E o ambiente objetivo se revela função dos fios intersubjetivos ("objetividade convencionada"). Isto merece pausa.

Quando a noção de um possuidor do corpo (de um núcleo duro da mente) ainda valia, o problema da identificação era o de "fidelidade ao núcleo duro" ("this above all: to thine own self be true" e outras grandiosidades comparáveis). O problema era logicamente insustentável, já que identidade implica diferença: não posso identificar-me com meu próprio "eu", a não ser que tal "eu" seja diferente de mim mesmo. Atualmente, e sob o enfoque da experiência concreta da morte do outro, tal estupidez da auto-identificação ("autenticidade") consagrada pelos milênios está sendo felizmente superada. "Identificar-se" passa a ser assumir relações (responsabilidades) que unem os cruzamentos na rede da intersubjetividade. "Sou eu" na medida em que assumo ser pai, ou escritor, ou jogador de bridge, ou cliente de loja de sapatos. Fora de tais relações não sou nada, e sou tanto mais quanto mais intensas e extensas as relações que assumo. O importante em tal vivência da identificação é a reversibilidade ("dialogicidade") das relações assumidas: não basta que seja chamado de "filho da puta", devo assumir-me tal para que o seja. Identificação envolve responsabilidade. Isto é o problema do antissemitismo e outros fenômenos do mesmo tipo: sou judeu na medida em que respondo ao antissemita.

Ora, um tal "ser para o outro" fundamenta a vivência da morte. Se sou para o outro, e se o outr desaparece, não sou mais, "morri" no sentido existencial do termo. Por certo, se o outro para o qual sou o que sou desaparece, continuam persistindo numerosas relações que me unem aos demais outros, e sobretudo continua persistindo o organismo no qual tais relações coincidem. De maneira que estritamente não morro com a morte do próximo com o qual me identifico (e que os Antigos chamaram de "alter ego"). Mas surge a vivência da irresponsabilidade: não mais tem sentido querer responder a qualquer chamamento. Tal vivência da liberdade (sou irresponsável, não dependo, não sou definido, limitado) se realiza pelo ato do suicídio, que é o ato de suprema liberdade. Com a morte do outro com o qual me identifico não vale mais a "pena" continuar procurando identificar-me. O slogan "give me liberty or give me death" (e sua variante des-existencializada "independência ou morte") se revelam demagogia: dar-se à morte é liberdade.

No entanto, antes de refletir sobre a morte enquanto horizonte da liberdade, é necessário enfocar outro aspecto da rede da intersubjetividade. Agarremo-nos à imagem da rede de arame na tela do plotter: constataremos curvaturas nas quais os fios se cruzam densamente, e trechos de distribuição relativamente esparsa. Tal imagem, se contemplada com atenção, destruirá a noção para-política de "direita" e "esquerda". Definamos "direita" enquanto afirmativa de que a sociedade deve ser boa para o indivíduo, e "esquerda" enquanto afirmativa de que o indivíduo deve ser bom para a sociedade. Ora, a imagem (embora apenas metáfora) mostra concretamente que não apenas a noção do indivíduo, mas igualmente a da sociedade são abstrações ideologizadas: não há sociedade sem indivíduo, nem indivíduo sem sociedade. Isto implica categorias políticas diferentes das da tradição: não importa querer mudar a sociedade, nem querer mudar o homem, o que importa é querer mudar as relações intersubjetivas. A consideração das consequências de tal categoria política extravasam o escopo do presente artigo. No entanto: morte e política se co-implicam.

A morte do próximo dissolve minhas responsabilidades: a voz que me chamava calou, e não há ao que possa responder doravante. E, ao dissolver minhas responsabilidades (ao libertar-me), a morte do próximo fez com que não mais exista eu. (Tal vivência é tão fortemente carregada, "estética", que é difícil falar sobre a mesma prosaicamente). Ora, existe na nossa tradição um fio de pensamentos e atos (o judaísmo) que procura articular a vivência, e traduzi-la em ato, mas nos seguintes termos: para perceber a voz do outro que me chama e provoca minha resposta, deve haver um Totalmente Outro. Senão, o meu próximo seria igual a mim mesmo, e não poderia haver relação intersubjetiva ("amor") entre mim e ele. O meu outro é o outro de mim, por eu reconhecer nele o Totalmente Outro. Em termos judaicos: o rosto do meu próximo é a imagem do Totalmente Outro (aliás, a única imagem). Em suma: sou responsável pelo meu próximo ("amo-o"), porque reconheço na sua voz o chamamento do Totalmente Outro ("amo o Totalmente Outro acima de todas as coisas").

A tradição judaica aqui evocada se impõe, porque nela a vivência da rede (da inter-relação) se articula nitidamente. O que explica, aliás, a volta de numerosos cristãos para as raízes judaicas do cristianismo. O relativismo do judaísmo é de extrema radicalidade: existo apenas em relação a Deus (a voz do Totalmente Outro), mas Deus existe apenas em função da minha resposta. Se  não ouço a voz de Deus ("chemà Israel" = ouça Israel) não existo, mas se não assumo tal vocação, Deus não existe. Angelus Silesius: "Ich weiss, dass ohne mich Gott nicht ein Nu kann leben" = "Sei que sem mim Deus não existirá nem por um só momento". Por isso, falar "sobre" Deus (teologia) é impossibilidade ideológica e reificante. O que é possível é responder a Deus (prece).

Em tal contexto de vocação e responsabilidade, o judaísmo (sobretudo o talmúdico) procura captar a vivência da morte do outro. Descoisificado (e despersonalizado) Deus, portanto descoisificada a "alma", a noção da imortalidade da alma no além se dissolve. Pelo contrário, todo ato que visa recompensa no além passa a ser "egoísmo", isto é, paganismo. A morte é assumida como horizonte, o que desvia a questão da imortalidade para campo diferente. Se eu sou a soma das responsabilidades que assumo, se "sou pra o outro e através disto para o Outro", então não morro enquanto os outros (e o Outro) respondem por sua vez às minhas respostas. Em termos judaicos: a minha imortalidade é a memória dos outros. Quando o outro morre, e sempre em várias ocasiões, o seu nome é pronunciado na fórmula "que sua memória seja benção". Os mortos vivem, e os vivos são responsáveis pela vida dos mortos; ou, em termos relacionais: os mortos vivem em função dos vivos, e os vivos em função dos mortos. Tal vivência radical da imortalidade enquanto "bola de neve" (para recorrermos a termo caro à informática) só pode ser captada sob o signo do "amor": é pelo amor ativo de Deus sobre todas as coisas que somos a imortalidade dos nossos próximos, e nossos próximos são nossa própria imortalidade.

Encerrado o excurso para o judaísmo (que é mentalidade tão radicalmente relacional, "imaterial", que passa a ser captável apenas atualmente), podemos refletir sobre a memória enquanto sede da imortalidade. Sabemos atualmente simular memórias em instrumentos, o que nos permite captar seu funcionamento: memória é armazém de informações adquiridas, armazém no qual tais aquisições são recombinadas para resultarem em informações novas. Partamos disto:

Argumento precedente sugeriu que o "eu" é cruzamento de relações intersubjetivas. Outro argumento sugeriu que o aspecto especificamente humano é o fato da elaboração, armazenamento e transmissão de informação adquirida. Reunindo os dois argumentos: o "eu" é a memória dentro da qual fluem informações emitidas por outras memórias, e a partir da qual fluem informações em direção de memórias outras. Essa descrição é de tecnicalidade repulsiva, e com efeito, sugere a dita "sociedade telemática", isto é, aparelhos simuladores de homens ligados entre si por fios reversíveis. Duas palavras de cautela: (1) nenhuma tecnicalidade deve ser repulsiva, porque "técnica" (em latim: "arte") é o que há de mais digno no homem; e (2) a noção da sociedade telemática deixa de ser prosaica, se vista contra o fundo da vocação responsável discutida nos parágrafos precedentes. Ora, se conseguirmos pôr entre parênteses a repulsa que nos causa a descrição de um "eu telemático", a vivência da imortalidade, atualmente confusa, vai adquirir contornos.

Várias tecnicalidades quanto à imortalidade nos confundem. Marilyn Monroe é imortal nos filmes. Franco poderia ter sido imortal, não tivessem os médicos desligado determinados aparelhos. Somos todos imortais na memória do Ministério da Fazenda. E na medida em que as memórias se aperfeiçoam (os chips de silício são substituídos por neurônios etc), não apenas todo evento, por ínfimo que seja, pode ser imortalizado, mas igualmente pode entrar em computações novas. Por exemplo: podemos fazer com que um Alexandre Magno memorizado seja vencido pelos Persas. Não se conteste isto pelo argumento metafísico: Alexandre memorizado é menos "real" que Alexandre de carne e osso. Ivan Karamazov é mais concreto (enquanto vivência) que Dostoiévski. Não há dúvida: a técnica vai confundindo nossa vivência da morte e da imortalidade, o que não deixa de ser paleolítico, no sentido deste artigo.

Reinjetada a vivência da responsabilidade, a vivência da morte e da imortalidade se delineiam mais nitidamente. O que finalmente exige que seja levantado o problema da vida (até aqui cuidadosamente driblado). Se abandonarmos escalas objetivas e racionais (como anos ou segundos), e se aplicarmos medidas existenciais (como vivências fortes e menos fortes), a vida se apresentará enquanto conjunto de vivências (o que parece, mas não é, tautologia). Não se trata de prolongar a vida ou a "expectativa da vida", mas trata-se de passar por vivências fortes. A vida "rica" é vida aventurosa. Ora, calcular a vida em vivências (como o ato em actomas, ou a fala em fonemas), implica inseri-la em campo. Vida enquanto computação de vivências virtuais distribuídas em campo. E tais vivências concretizadas são fios que unem a vida a outras vidas. Determinada vida é tanto mais rica quanto maior a responsabilidade pelas vivências que a perfazem. Dizer isto é articular a consciência "histórica" no sentido hegeliano: "sou responsável pelos meus atos, não pelos meus sofrimentos". Dizer que os responsáveis pela minha vida são os outros (capitalistas, comunistas, imperialistas, o governo, ou minha mulher) é admitir não-vida. Vida no sentido aqui proposto é concretização de vivências virtuais em cima de responsabilidade. Ora, se refletirmos sobre tal afirmativa, verificamos que vida e criatividade passam a ser sinônimos, o que permite localizar o terreno existencial da morte e da imortalidade. O terreno da liberdade. Morte = liberdade ab-soluta, e imortalidade = recusa de tal liberdade.

Querer prosseguir as reflexões na direção aqui apontada seria empresa perigosa: levaria até regiões pisadas por cretinos, já que anjos a elas se recusam: "fools rush in where angels feel to tread". Por isso é preferível encerrar o discurso sobre a imortaliadde por duas consideraões tangenciais, mas talvez pertinentes. A primeira diz respeito à afirmação dos Antigos, segundo a qual quem não busca fama é infame - porque quem não busca fama (quem não visa ser memorizado pelos outros) não assume rsponsabilidade pela sua vida: morre. A segunda consideração tangencial é relativa ao caçador paleolítico com o qual este artigo se iniciou (um tanto perfidamente): os problemas proto-históricos e históricos da morte e da imortalidade não mais são os nossos. Não podemos mais acreditar na alma imortal, e em compensação podemos imortalizar o corpo. De modo que devemos repensar a morte e imortalidade. Ora, o caçador em Lascaux pode servir-nos de guia. Para ele (pelo menos segundo nossas reconstruções) morrer significava reintegrar-se em contexto. O nosso próprio contexto é outro: não mais caçamos à beira da Dordonha. Mas podemos talvezcaptar a essência da vivência paleolítica da morte: é ela o método para passar para a imortalidade, desde que assumamos por ela responsabilidade. Que seja permitida a observação concludente: os Antigos afirmavam que a arte de morrer (ars moriende) é a suprema arte. Quiçá estamos, depois de interrupção de vários séculos, reaprendendo tal arte, não graças aos novos aparelhos, mas com a ajuda deles.

Texto original disponível em Flusser Brasil.